RUBRICA: ANNE FRANK NÃO MORREU #6
Massacre de Sinjar, o genocídio esquecido

Gustavo Lopes, do 12.º AJ
20/02/2020

Querida Anne, Desde a tua partida que o mundo tomou a decisão de não mudar rigorosamente nada. Infelizmente, todo o teu sofrimento foi insuficiente para evitar situações semelhantes à tua história. O teu Diário não bastou para fazer parar a apatia e a intolerância que persiste no mundo e, por isso, ainda existem crianças que, como tu, sentiram e sentem na pele toda a desumanidade de que um ser humano é capaz.

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Carvalhos, 21 de fevereiro de 2020


Querida Anne,
Desde a tua partida que o mundo tomou a decisão de não mudar rigorosamente nada.


Infelizmente, todo o teu sofrimento foi insuficiente para evitar situações semelhantes à tua história. O teu Diário não bastou para fazer parar a apatia e a intolerância que persiste no mundo e, por isso, ainda existem crianças que, como tu, sentiram e sentem na pele toda a desumanidade de que um ser humano é capaz.


A boa notícia é que também há jovens que fazem questão de honrar a tua história e a tua pessoa. Vi, na “internet”, um sistema criado da década de 60 do século passado e que permite partilhar informação de todo o mundo, que, numa escola em Portugal – Colégio Internato dos Carvalhos –, um grupo de alunos decidiu usar a tua história e os teus relatos para denunciar situações semelhantes que abalam o mundo atual. Chamaram-lhe “Anne Frank não morreu! (porque milhares de crianças precisam dela).”


Não sei se já ouviste falar do Massacre de Sinjar, contra a população da minoria Yazidi. Provavelmente não, até porque uma boa parte da Humanidade não parece, sequer, saber da existência deste terrível acontecimento.


Eu passo a explicar: a comunidade Yazidi, originária do Curdistão e residente nas montanhas de Sinjar, possui uma crença religiosa deveras específica. É chamada de Iazdanismo e mistura elementos de religiões distintas. Assim como tu, foram e são, por isso, perseguidos desde muito cedo, principalmente pelo Estado Islâmico, que os acusa de serem infiéis religiosos e adoradores do diabo.


Toda esta intolerância levou a que estas perseguições chegassem a um ponto extremo e desumano, quando, em agosto de 2014, as tropas muçulmanas decidiram ocupar o território de Sinjar e começar uma onda de ataques fatídicos. O pânico instalou-se e mais de 5000 yazidis foram mortos, 6000 presos, raptados e mantidos em cativeiro.


Sabes, embora denominado genocídio pelas Nações Unidas, este massacre não é assunto nas aulas de História, porque não foi notícia. Acreditas que é como se não passasse de uma alucinação ou de um pesadelo esquecido? O mundo fechou os olhos ao terror trazido pelo Estado Islâmico no Médio Oriente. As almas, infelizmente, não descansam em paz porque ninguém, assim, o desejou. Milhares de crianças e mulheres foram raptadas e aprisionadas, não só nos acampamentos militares do Daesh, como também no poço do esquecimento.


Mas Nadia Murad resistiu e sobreviveu para não deixar esquecer. Jurou que seria a última (vítima) e deu esse título ao livro que escreveu.


Ias adorar conhecê-la, usa a escrita como tu para testemunhar o terror trazido pelo Daesh a Sinjar. Conta-nos que as crianças e mulheres foram levadas dos seus familiares e transportadas em condições precárias para acampamentos militares. Lá, as mulheres e as meninas eram vendidas aos soldados islâmicos, dando início a um circuito de tráfico humano. Eram obrigadas a realizar as tarefas domésticas para os soldados e, ainda, serviam como uma espécie de entretenimento destes. Com isto, eram violadas, torturadas e violentadas, tudo pelo puro divertimento dos seus “donos”.


“Violavam-nos sem culpa… como se fosse uma coisa natural.”, lamentou Nadia num dos seus discursos.


E quando se saturavam das suas escravas, os soldados “vendiam-nos ou ofereciam-nos”, dando continuidade ao ciclo vicioso que caracterizava o cativeiro. “Sei que nunca mais terei a minha inocência outra vez”, sentias tu, e sentem estas meninas, que viram a sua inocência arrancada à força sem dó nem piedade.


Nadia ganhou, juntamente com Denis Mukwege, o Prémio Nobel da Paz em 2018, e é embaixatriz da Boa Vontade da ONU.


Ativista dos Direitos Humanos dos yazidis, conta-nos que outra das mais terríveis atrocidades do Daesh é converter jovens, pessoas frágeis psicologicamente e com ideais ainda não definidos e sólidos, ao islamismo radical através de uma lavagem cerebral, tão profunda que estes até se esquecem da identidade dos próprios pais.


Nadia dá o exemplo do seu sobrinho Malik, um menino yazidi que foi levado para um campo de treino com 11 anos, e, desde então, afirma que é muçulmano e que pretende continuar a combater pelo Estado Islâmico, mesmo depois de voltar a casa.


Percebes o quão poderoso é o Daesh? Claro que sim, as barbaridades são-te familiares!


O direito à liberdade de escolha foi violado, porque estes meninos-vítimas foram submetidos a um enorme processo de influência. O direito à educação digna foi, também, desrespeitado, visto que as crianças estão presas, em vez de estarem rodeadas de conhecimento, amor, brincadeira aprendendo a formar as primeiras ambições de vida.


Digamos que os campos de treino são uma espécie de campos de concentração, só que, em vez de serem exploradas e levadas para o extermínio, as crianças-soldado são ensinadas a exterminar.


Porém, também dentro da própria etnia existem direitos destinados às crianças que não são, efetivamente, respeitados na própria comunidade. Como na Europa do pós-guerra, em que os prisioneiros libertados não foram bem recebidos pelas comunidades de onde haviam sido retirados, também a própria etnia rejeita com desprezo e preconceito as crianças frutos de violações nos acampamentos militares muçulmanos. Sob o argumento de que a comunidade e a religião não aceitam ligações entre yazidis e muçulmanos, as mães destas crianças estão submetidas à terrível decisão: abandonar o filho e voltar à sua comunidade, ou, então, decidir cuidar e proteger o filho afastados do grupo.


Será isto aceitável em nome de um estatuto cultural? Não será isto um massacre ao estatuto da criança na medida em que se fecha a porta à igualdade, à vida digna suficiente ao desenvolvimento físico, mental, espiritual, moral e social da criança?


Acho que partilhas da mesma opinião quando digo que lhes tirar a sua identidade, oportunidades e a sua família é deixar a criança entregue ao desamparo do percurso vital. Tudo isto para honrar a tradição e a religião.


As crianças yazidis, como tu, não foram crianças. Foi-vos roubada uma parte tão importante para o desenvolvimento normal e saudável de um ser humano. Que dignidade vos deram? Que importância vos prestaram? Que direitos vos foram concedidos?


Creio que todas as declarações e convenções, entretanto elaboradas, foram, de uma forma vil, violadas e desrespeitadas: declarações de que a criança precisa de proteção contra o perigo, que é um ser frágil e que merece uma vida digna, com a família, para que o seu desenvolvimento seja o mais benéfico, saudável e HUMANO possível. Educação, liberdade, vida, família, nacionalidade, identidade, expressão livre, religião livre, honra, bem-estar, saúde e, no fundo, SER CRIANÇA são retirados às vítimas destas terríveis situações, deixando-as numa espécie de vácuo, sem saída que as aprisiona cada vez mais.


Os alunos da escola de que te falei entenderam o quão necessário é relembrar a tua terrível história, Anne, e usá-la para evitar situações semelhantes. Nomearam- te Embaixatriz dos Direitos da Criança (se tivesses ficado por cá de certeza que o terias sido, de facto), porque és o maior exemplo das terríveis e desumanas atitudes que um ser humano pode ter para com um seu semelhante, mostrando-nos que a intolerância e a apatia não se ficaram pela 2.ª Guerra Mundial.


As crianças yazidis são só mais uma prova de que ainda estamos longe da plena consolidação universal dos Direitos Humanos. O mundo ainda é irregular, ignorante e devorador, criador de desordem, preconceito, violência, sangue e morte.
E tu, vítima que foste deste mundo cruel, tens noção do quão monstruoso e intolerante é o ser (que se designa por) “humano”.


“Eu ainda creio na bondade humana” (in “Diário” de Anne Frank).


Eu também, Anne, mas ela parece não acreditar no ser humano. Onde está ela?


“Durante o grande caminho, a arma mais afiada de todas é a bondade e o espírito gentil.” (in “Diário” de Anne Frank).


Mas onde está ela, quando é dessa arma que precisamos para combater ao lado dos Direitos Humanos? E porque é que poucos a usam?


Sinceramente, não sei, mas prometo não te desiludir e tentar fazer pelo mundo o que ninguém fez por ti.


Deste amigo que te admira,
Gustavo Lopes, do 12.º AJ



PS.: Se este artigo vos despertou curiosidade acerca daquilo que foi o Massacre de Sinjar, podem aceder às hiperligações
<https://rr.sapo.pt/2018/10/08/actualidade/nadia-murad-nobel-da-paz-espera-que-vitimas-de-violencia-sexual-sejam-ouvidas-e-aceites/video/185240/>;
<https://rr.sapo.pt/2016/12/13/actualidade/ex-escravas-yazidi-prometam-nos-que-nao-voltam-a-permitir-que-isto-aconteca/video/122290/>;
<http://reaperteam.org/yazidi-betrayal-and-massacre-is-on-barzani-and-islamic-state/>.

 

 

 

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