RUBRICA: ANNE FRANK NÃO MORREU #5
Corações que «sangram»

Filipa
13/02/2020

...Anne, parece que ainda não aprendemos com a lição que nos deste… É este o mundo justo em que vivemos? Um mundo justo em que a própria justiça é, claramente, injusta?! Anseio por um mundo onde os direitos humanos são respeitados, já que eu gostava de ser humana, no sentido lato da palavra.

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Carvalhos, 13 de fevereiro de 2020


Querida Anne,
Escrevo-te porque sei que me compreenderás.


“Todos têm dentro de si um fragmento de boas notícias. A boa noticia é que tu não sabes o quão extraordinário podes ser! O quanto podes amar! O quanto podes executar! E qual é o teu potencial.” (In “diário de Anne Frank”)

 

Um dia, na escola, a minha professora falou-nos de ti. Disse que tínhamos de ser corajosas como tu, que eras mundialmente reconhecida como embaixatriz dos direitos das crianças, que devíamos acreditar que somos extraordinárias, mesmo quando nos dizem o contrário, e que temos potencial, como tu acreditavas.


E eu não posso deixar de denunciar aquilo que se passa no meu querido país.


Vivo no México e, diariamente, desaparecem milhares de meninas como nós. Há 3 anos foi a minha vez. Fui raptada por um grupo de homens de capuz preto que, desde então, me tem usado como um meio de retaliação entre vários cartéis de droga. Sou como um objeto, transporto diariamente milhares de pesos de um local do México para um outro, consoante o que eles determinam. Usam-me porque sou uma menina, e quem iria desconfiar de uma criança que transporta dinheiro sujo? Não me posso queixar! Não posso tentar fugir!


Lembras-te de como foi viver no anexo? Desculpa, claro que lembras…


Eles estão sempre a ameaçar a minha família. Sei que eles acham que estou morta, e, sinceramente, eu acho que preferia… Mas tudo o que queria agora era poder abraçar os meus pais, dizer-lhes que estou viva. Apesar de me sentir muito sozinha, não estou sozinha. Todos os dias chegam ao local, onde estamos fechados em cativeiro, milhares de meninos. Eu ouço-os, mas não lhes posso ver o rosto. Dão-me pão para ter energia mínima para transportar o dinheiro. Se não precisassem de mim viva, deixar-me-iam morrer à fome.


“Do fundo do coração, sei que nunca mais terei a minha inocência outra vez.” (In “diário de Anne Frank”)

 

Os meus pais estão a fazer tudo para me encontrar, mas eu sei que os homens que me têm em cativeiro são muito poderosos, o que os impede de me encontrar. Tenho medo que lhes aconteça alguma coisa…. Há polícias, parecidos com as SS que tão bem conheceste, envolvidos nisto e a lucrarem muito dinheiro com esta situação.


Como se explica que a ambição destas pessoas por dinheiro seja tanta que não se preocupam com quem prejudicam com tudo isso? Tinhas razão quando escrevias,


“O homem é grande de espírito, mas mesquinho nas ações.” (In “diário de Anne Frank”)

 

O México tem um nível de marginalidade elevadíssimo, com taxas de criminalidade muito altas. Na verdade, eu sinto que aumentam todos os dias… mas é um país tão bonito, com muita cor e música e tacos com feijão. “Ups”! Desculpa, pois eu li no teu diário que já não suportavas feijão.


“Nosso almoço, durante a semana, consiste em feijão, sopa de ervilha, batata com bolinhos, guisado de batata, e, pela graça de Deus, cenouras podres ou nabos, e em seguida voltamos ao feijão. Por causa da escassez de pão, comemos batatas em todas as refeições, a começar pelo café da manhã, mas, aí, nós as fritamos um pouco. Para fazer sopa, usamos feijão, batatas, pacotes de sopa de legumes, pacotes de sopa de galinha e pacotes de sopa de feijão. O feijão entra em tudo, até no pão.” (In “diário de Anne Frank”)

Acreditas que existe um túmulo clandestino localizado na região metropolitana de Guadalajara, em Jalisco, onde, há alguns dias, foram encontrados 119 sacos plásticos com restos humanos?! De que foram acusados? Sinceramente não sei. Provavelmente sabiam demais.


No nosso país, mais de 37 400 pessoas estão oficialmente registadas como «desaparecidas». Na esmagadora maioria, terão sido mortas, vítimas da violência que perdura e já ceifou mais de 250 mil vidas desde 2006. Todos estes atos de violência podem ter na sua base os poderosos cartéis de droga, originados pelo anterior presidente do país, Filipe Calderón. Como se explica que um cartel de droga domine um país e as pessoas que o habitam?


A antropofagia social está claramente plasmada nestes acontecimentos, em que os «grandes» se alimentam à custa dos mais «fracos». A ambição desmedida das pessoas origina estas situações, em que a humanidade desaparece, tendo como fundo o dinheiro fácil e sanguinário.


“Podemos estar sozinhos mesmo a ser amados por todos” (In “diário de Anne Frank”)

 

As saudades que tenho da minha família são insuportáveis. A minha família não sabe onde estou e se algum dia voltarei. Não sabem se estou viva ou morta. Fui esquecida pela sociedade, mas nunca pelos meus pais que lutam por me procurar com o peso da incerteza de, possivelmente, nunca me encontrarem. Sei que me vais compreender, mas também sei que não irás perceber o facto de, 90 anos depois, tudo continuar igual.
Como eu gostava de voltar à minha escola onde uma professora me disse que o mais importante é aprendermos com os nossos erros. Assim, os ignorantes não são aqueles que erram, mas aqueles que, efetivamente, repetem os erros, não demonstrando ter aprendido com estes…


Sei que milhões de crianças sofrem como nós no dia em que te escrevo,


“Mas, quando uma pessoa está desesperada, pode valer- lhe alguma coisa pensar nas misérias dos outros.” (In “diário de Anne Frank”)


Anne, parece que ainda não aprendemos com a lição que nos deste… É este o mundo justo em que vivemos? Um mundo justo em que a própria justiça é, claramente, injusta?! Anseio por um mundo onde os direitos humanos são respeitados, já que eu gostava de ser humana, no sentido lato da palavra.


Com amor,
A tua,
Filipa

 

PS.: Agora para ti que estás a ler isto: se ainda não te chocou o que leste, podes sempre consultar

<https://pt.euronews.com/2019/05/11/marcha-pelos-filhos-desaparecidos-no-dia-da-mae
https://jornalistaslivres.org/vivos-los-queremos/ >!

 

 

 

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