RUBRICA: ANNE FRANK NÃO MORREU #4
“Breast Ironing” e Mutilação Genital Feminina: “Uma Forma Secreta de Abuso”

Mariana
06/02/2020

Hoje, escrevo-te para falar do Dia Internacional da Tolerância Zero à Mutilação Genital. Não deves saber o que são “dias internacionais” porque só foram criados depois da tua partida...

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Quinta-Feira, 6 de fevereiro de 2020

Querida Anne:

Hoje, escrevo-te para falar do Dia Internacional da Tolerância Zero à Mutilação Genital. Não deves saber o que são “dias internacionais” porque só foram criados depois da tua partida.


Os dias internacionais dão a oportunidade para sensibilizar as pessoas sobre temáticas de grande interesse, nomeadamente os Direitos Humanos, o desenvolvimento sustentável ou a saúde. Paralelamente pretendem chamar a atenção dos meios de comunicação social e dos governos para que sejam postas em ação medidas concretas.


Mas ainda assim parece que tudo o que tu sofreste não foi o suficiente para a Humanidade aprender com os seus erros. O mundo está a tornar-se cada vez pior, continua cruel e desumano, está a destruir cada vez mais crianças a quem a infância está a ser roubada. E tu sabes como elas se devem estar a sentir…


“Porquê esta guerra? Porque é que os homens não podem viver em paz? Para quê tantas destruições?”
(in “Diário de Anne Frank”)

 

Sabias que existem milhões de meninas que são vítimas de dois crimes relacionados com a violência de género só porque nasceram mulheres?


Vou explicar-te:


O “Breast Ironing” consiste em queimar os seios das meninas, usando objetos quentes, incluindo pedras e martelos, durante um elevado período de tempo, na tentativa de impedir ou reverter o seu crescimento. Esta prática proveniente da África Ocidental e Central, principalmente da Guiné e dos Camarões, espalhou-se com as comunidades migrantes, estimando-se que afete, em todo o mundo, 3,8 milhões de mulheres.


Vários relatórios afirmam que estas iniciativas são realizadas pelos membros da família da vítima, muitas vezes avós e mães, que acreditam que estão a proteger a rapariga de assédio sexual, violação, rapto ou até mesmo casamento forçado. A família destas raparigas, que as devia defender, proteger, cuidar e amar a todo o custo, está a violá-las, fisicamente e mentalmente!


Se pensarmos bem, o “Breast Ironing” é um reflexo de uma dinâmica de poder que exige a submissão feminina e o controlo total sobre a sexualidade de todas estas raparigas. Elas são obrigadas a mutilar o seu próprio corpo para não serem violadas e assediadas.
Parece irreal, eu sei, mas acontece todos os dias. E não ficamos por aqui!


Sabias que continuam a utilizar a religião como forma de justificar a tortura? A Mutilação Genital Feminina (MGF) representa isto mesmo. É uma tradição profundamente enraizada e praticada por grupos étnicos específicos. Pode assumir diversas formas, envolvendo a extração, suturação ou remoção de parte ou da totalidade dos órgãos genitais femininos externos. A mutilação é levada a cabo em várias idades, desde o nascimento até à primeira gravidez, sendo praticada, maioritariamente, entre os 4 e os 8 anos.


Vais ficar estupefacta quando te apresentar as razões para a prática destes atos, que, de acordo com a ONU, afetará mais de 4 milhões de meninas em 2020. Acreditas que tudo se baseia na desigualdade de género?


Na tentativa de controlar a sexualidade da rapariga, baseada em ideais de pureza, modéstia e estética, é sustentada por uma série de crenças, com alegados benefícios de saúde e higiene, motivos religiosos ou de tradição. Esta prática é quase sempre considerada como um ritual de transição para a rapariga, garantindo o seu estatuto e o seu casamento dentro da comunidade. A opção de não mutilar é muitas vezes recebida com forte oposição da comunidade, uma vez que a MGF é uma tradição profundamente enraizada nas estruturas sociais, económicas e políticas da comunidade.


Na maioria dos casos, este procedimento é realizado por mulheres da comunidade em que criança vive, com instrumentos de corte inapropriados, como facas, vidros ou navalhas. Estes instrumentos são raramente esterilizados e anestesiados, podendo levar à transmissão de SIDA ou à morte.


Eu estava certa, Anne, parece que ainda não aprendemos com os erros cometidos no passado.


Há muita gente que ainda considera a mutilação genital e o “breast ironing” como “práticas tradicionais”, feitas com boas intenções e motivadas por crenças religiosas apoiadas pelos familiares das raparigas sujeitas. Talvez, por esta razão, seja desculpada por muitos, já que, supostamente, se deve a “fatores culturais” e os fatores culturais devem ser respeitados.


A pureza da raça ariana também matou 6 milhões, supostamente na defesa da honra e dos valores da Alemanha.


Eu recuso vigorosamente este tipo de argumento, que apenas traz mais fragilidade aos direitos das mulheres. Como tu, nenhuma destas vítimas escolheu passar por tratos cruéis e desumanos. Nenhuma destas raparigas escolheu ter o seu corpo violado, maltratado, discriminado e tão pouco privado da sua integridade física, sexual, reprodutiva e mental. A Mutilação Genital Feminina e o “Brest Ironing” não são tradição, são crime.


Se tivesses ficado por cá, soprarias 90 velas e nós sabemos como gostavas de festas.


“Sábado à tarde foi a festa dos meus anos. Passámos um filme «O guarda do farol» (…), que agradou muito às minhas amigas. Fartámo-nos de fazer tolices e estivemos divertidíssimas. Vieram muitos rapazes e raparigas. A mãe teima em querer saber com quem eu mais tarde gostaria de casar.” (in “Diário de Anne Frank”)

 

Provavelmente serias entrevistada para o Lonka Project, tributo prestado aos sobreviventes do Holocausto. E como tu ias gostar de saber que, desde 2007, todos os dias 27 de janeiro são dedicados, pelas Nações Unidas, ao programa “Remembrance and Beyond”!
Durante o último ano, 250 fotojornalistas de 24 países contribuíram, voluntariamente, para fazer uma resenha com os depoimentos dos sobreviventes de Auschwitz. A exibição foi feita dia 27 de janeiro, dia da libertação do campo de onde, dias antes, tinhas partido.
Não imaginas a força dos depoimentos destes teus amigos que, como tu, fizeste através do teu diário, e que insistem em não deixar esquecer


“Vou continuar a tentar encontrar uma maneira de me tornar no que gostaria de ser e o que poderia ser, se… não existissem outras pessoas no mundo” (in “Diário de Anne Frank”)


Acredito que os Direitos Humanos são a história das lutas humanas, foram conquistados e aplicam-se a cada um de nós! São universais, pertencem a todas as pessoas e todas têm o mesmo estatuto em relação a estes direitos. São inalienáveis e, por isso, não podem ser tirados por terceiros, nem cedidos voluntariamente por ninguém, e são indivisíveis, não havendo hierarquia entre os diferentes tipos de direitos.


São todos igualmente necessários a uma vida digna, sendo que não se pode suprimir um para promover outro. Há um caminho enorme a percorrer em relação a estas práticas, Anne. Só vamos, realmente, ter cumprido o nosso papel enquanto seres humanos éticos quando formos capazes de olhar nos olhos de todas as vítimas e de quem viveu com medo de ser submetido a esta atrocidade, e afirmar que podem finalmente viver livres de violência, com dignidade.


Quando se trata de cultura e de tradições o mais indicado é dar passos pequenos, mas, acredito que, passo a passo chegaremos ao nosso objetivo: recuperar a nossa humanidade e tornar o mundo menos desumano! Como tu


“Tenho os meus ideais, o meu modo de pensar e os meus planos, embora ainda me falta a capacidade de traduzir tudo isso em palavras.” (in “Diário de Anne Frank”)

Vês, Anne,… eu disse que não ias acreditar!


Um beijo.
Tua Mariana

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